terça-feira, 17 de abril de 2012

Em Defesa de uma Matriz Curricular Clássica para o Ensino de Engenharia

Por Ricardo Alvim, professor e pesquisador da UESC

Este texto não representa necessariamente as opiniões dos membros do Colegiado do Curso de Engenharia Civil da UESC, dos seus departamentos e da própria instituição, sendo opiniões e análises de caráter autoral individual.

Tem se tornado comum a grita de entidades ligadas a indústria para a modificação, ou a modernização, segundo seus defensores, das matrizes curriculares dos cursos de Engenharia no Brasil.
De acordo com alguns dos defensores dessas ideias, uma das causas da elevada evasão observada nos cursos de engenharia, cerca de 35%, está relacionada à distância entre os currículos dos cursos e a solução concreta de problemas impostos pela realidade do mercado.
Mas o que é a “realidade do mercado”? Fazer obras públicas? Construir edifícios? Pontes? Estradas de ferro? Explorar petróleo? Excluindo os edifícios residências e comerciais, onde está o crescimento sustentável dessas demandas? Até quando?
A razão da evasão é justificada pelos especialistas por alguns fatores: (i) pelo grau de dificuldade dos cursos de engenharia, que exigem maior dedicação; (ii) a necessidade de conjugar trabalho e estudo por parte do aluno, ou o que dele se exija atuar em outras atividades; (iii) baixa interligação das disciplinas básicas nos dois primeiros anos do curso com a profissão.
Os três argumentos são falsos!
Em primeiro lugar, a maior exigência e dedicação aos cursos de engenharia é um mito. A engenharia não exige maior ou menor dedicação que qualquer outro curso! A engenharia exige vocação! A “dificuldade” apontada é confundida com a falta de vocação e preparo dos ingressantes. Há, isso sim, falhas grotescas na formação do aluno egresso do ensino médio, desde a sua formação fundamental. Com defensores da modificação, redução ainda maior, das matrizes do ensino médio, retirando, ou tornando opcional, por exemplo, o ensino da Matemática, Física e Química. Argumentando-se que esses conhecimentos não são usados na vida ou no dia-a-dia dos alunos assim formados.  O que é mais um argumento retrogrado e anacrônico. Deve-se, alternativamente, investir-se na criação de estímulos. Onde estão os museus de Ciências, Tecnologia, Biologia, História? Um exemplo que poderia ser copiado no Brasil encontra-se em São Paulo, o Museu Catavento (http://www.cataventocultural.org.br/home.asp), onde é possível para crianças e adultos apreender de forma lúdica e estimular o amor pelas diferentes áreas do saber. Mais ainda, nos EUA e países da Europa investe-se nesses estímulos fortemente. Discutem constantemente a formação básica e encaram essas questões como estratégicas para o desenvolvimento de suas economias.
O segundo argumento é também falso. Quanto ao trabalho, referem-se a realidade das instituições particulares, que funcionam em horários noturnos, com salas lotadas com mais 90 alunos, geralmente acima das cotas aprovadas pelo MEC, usando-se como argumento o preenchimento de vagas remanescentes de outras turmas de anos anteriores, não preenchidas nos processos de seleção ou por repetência. Na verdade, o aluno trabalha e estuda nessas instituições, porque essa é a realidade desse alunado, geralmente mais maduro e que vê a formação nas faculdades como um elemento complementar as suas carreiras, nem sempre como primeira opção. Se para o curso esse aluno não tem vocação ou pré-requisitos, o que deve ser feito? Baixar a qualidade do curso? Isso é degradante; e se aplicado de forma generalizada, por força e lobby da indústria, criará uma geração de pseudo-engenheiros, sem qualificação para atuar em qualquer que seja o mercado.
Em terceiro lugar, o que significa “baixa interligação das disciplinas básicas nos primeiros anos do curso com a profissão”? Significa ensinar Matemática, Física e Química. Mas isso é essencial! São conhecimento básicos. Como fazer um aluno de Engenharia Civil ou Mecânica, por exemplo, entender Dinâmica das Estruturas se o mesmo não sabe Mecânica das Vibrações, Trigonometria, Funções Complexas, Cálculo Diferencial e Integral, entre outras importantes bases do conhecimento? Isso é o que se chama “núcleo duro básico” da formação do engenheiro, e não pode ser negligenciado, abandonado ou descartado.
Não existe mágica! O Brasil precisa de engenheiros para calcular, inovar e desenvolver novas tecnologias, explorar e reciclar. Não precisamos copiar modelos de outros países, muito menos suas taxas de inserção e formação de engenheiros. Mesmo porque o Brasil é um país singular, que experimenta um crescimento sem precedentes em um curto espaço de tempo. Após décadas de estagnação, têm-se, ao invés de modificar as matrizes de formação existentes, que forçar um retorno às origens, com a formação ampla do engenheiro, clássica. Só assim é possível se garantir a inserção desse profissional, com formação complementar em pós-graduação, em outras áreas do conhecimento. E mais do que a capacidade de assimilar mimeticamente o conhecimento, trazer à luz novas perguntas e questionamentos.
Outra proposta polêmica, que está sendo implantada em cursos de instituições federais, está no Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnológica. Isso pode representar um retrocesso, ou cópia distorcida de modelos de outros países. Uma coisa é unir a formação básica nos cursos de engenharia, outra é forçar a união com outras áreas do conhecimento, como Biológicas, Humanas, etc.
O que se tenta é facilitar a criação de vagas a qualquer custo, e facilitar a formação em quantidade, cedendo aos apelos da indústria, e a modelos de instituições particulares e públicas em busca de economia, que não vendo como competir em termos de qualidade com os centros de excelência, tentam de toda forma modificar as matrizes de instituições que invejam, nivelando por baixo o ensino, uma vez que as suas matrizes curriculares são modificadas quase permanentemente todos os anos, sem controle rigoroso do MEC, em especial nas particulares. A estratégia é desfigurar a formação do engenheiro, usando argumentos fantasiosos de que o problema da má qualidade dos profissionais formados está na maneira como se forma. Na verdade, o problema é esse, mas não reside na matriz curricular, e sim na ausência de infra-estrutura e na desvalorização da carreira docente no país. O professor ganha baixos salários e cada vez mais faltam profissionais capacitados para o exercício da docência no nível superior.
Os cursos de engenharia estão virando verdadeiras “saladas de frutas” com isso. E depois se questiona a qualidade do egresso? Como formar um engenheiro sem as cadeiras essências de formação? Não se trata de formar um sociólogo, psicólogo, administrador, economista ou qualquer que seja a área em que a indústria venha exigir maiores conhecimentos de um engenheiro. Isso é feito de forma complementar, em pós-graduação.
A função de um curso de engenharia é forma um engenheiro na essência.
Nas propostas de revisão das matrizes curriculares surgem, por exemplo, ideias estapafúrdias como a inclusão de idiomas estrangeiros. Ora, hoje, como já há alguns anos, volta à tona a ideia de incluir a língua inglesa como disciplina obrigatória nos cursos de engenharia, argumentando-se ser esse idioma fundamental. De acordo com a indústria, passa a ser um diferencial na facilitação da “empregabilidade” do futuro engenheiro. Mas consegue-se fazer alguém aprender inglês em 60 h de disciplinas geralmente de caráter instrumental? Não é possível. E essa é a resposta que vem sendo colhida há décadas nas experiências já tentadas. Não há nada de novo nisso! Aqueles que aprendem outros idiomas o fazem por outros meios. Sim, porque a academia não é um “cursinho de inglês”. E se em 10 ou 20 anos a principal língua no mundo for o Mandarim? Com o forte crescimento da China, isso pode se tornar realidade. Então devemos ensinar a falar Chinês nos cursos de Engenharia desde já?
Além disso, a indústria apela para alguns fatores que considera essenciais na formação de um engenheiro, tais como: trabalho em equipe, atitude empreendedora, visão social, senso ético, respeito ambiental, comunicação, além de desafios e soluções de problemas da indústria. Mas apelam para que isso seja feito pela inserção de disciplinas, e a retirada de cadeiras clássicas. Mesmo porque não é possível incluir disciplinas sem retirar outras, tendo em vista que um curso de 5 anos não consegue comportar mais que 4500 h. E em algumas instituições é mínimo que se pratica, disfarçado, isto é, 3600 h, incluindo atividades complementares, etc.
Bem, o Curso de Engenharia Civil da UESC está na dianteira, quando propõe inúmeras ferramentas de formação modernas, em especial, as cadeiras de Projeto Integrado, com semestres temáticos. Onde temas como esses propostos são abordados, mas devem ser feitos não por disciplinas específicas, mas pela união dos conhecimentos em projetos que abordam tais questões. É um erro grotesco substituir a cadeira de Projeto de Estruturas de Madeira, por exemplo, disciplina que vem sumindo das matrizes dos cursos de Engenharia Civil pelo Brasil, por disciplinas de Engenharia Ambiental. O correto é discutir o segundo tema dentro das disciplinas onde esse contexto torna-se relevante, inclusive em Madeiras.
A criação e substituição de disciplinas nas matrizes dos cursos de Engenharia Civil virou modismo. Primeiro, para “facilitar” a formação do engenheiro, que quando não teve formação sólida nas áreas de Exatas, sofre para desenvolver projetos. Com isso, para as instituições de ensino fica mais barato contratar um único professor de “Administração”, para mais de um curso, por exemplo, e eliminar alguém que só ministra Projeto de Estruturas de Madeira, apenas no curso de Engenharia. Depois, quando se verifica que no Japão se constrói muito mais em Madeira que no Brasil, empresas e o Estado contratam engenheiros e arquitetos como consultores para ensinar o que muitos engenheiros brasileiros já não sabem, com exceção de poucos que sobraram dos cursos de engenharia civil clássicos.
Nas instituições públicas, por exemplo, a criação e modificação de matrizes curriculares gera uma verdadeira guerra interna. Novos cursos, ou a modificação dos existentes, quase sempre são vistos de forma clientelista. É a oportunidade de criação de novos empregos. Novas vagas para professores. Barganhas entre departamentos e outras negociações, incluindo a "sociedade organizada". Disso surge um conflito interno, onde para justificar a contratação de um historiador, inclui-se uma disciplina de História, qualquer que seja a razão, em um curso de Engenharia, que acaba por ocupar o lugar de outra disciplina que seria mais importante para formação de um engenheiro. E isso serve a que propósito? Compensar as deficiências do ensino básico é que não é! Não, justifica-se que um engenheiro precisa saber História. Mas já não sabe? Para que serve o ensino básico?
Outro aspecto defendido pela indústria é a introdução no novo currículo de conceitos e práticas nas temáticas de gestão da inovação, propriedade intelectual, empreendedorismo, gerenciamento de projetos etc., com foco em inovação tecnológica para solução de problemas do setor produtivo.
A palavra “inovação” virou uma verdadeira panacéia no Brasil. É a palavra da moda, usada para quase tudo, desde as políticas públicas ou mesmo industriais, como um dia foi a sustentabilidade. Copia-se aí o modelo dos países orientais, como a China, Índia, Coréia, entre outros. Mas qual é a lição verdadeira que esses países nos passam? Apenas formar mão-de-obra? Não, o verdadeiro precursor é a qualidade da formação. E revisar as matrizes curriculares para baixo não resolve a questão. Ao contrário, a observação a ser feita é como é formado um engenheiro japonês, por exemplo. Sabe Matemática, Física e Química? Sim, e muito! E com isso, não se torna um mero assimilador de conhecimentos. De fato, se torna capaz de questionar o conhecimento existente; e apenas dessa maneira empurrar a barreira do conhecimento.
A indústria apela mais, afirmando que o engenheiro que escolhe cursar uma pós-graduação não serve para o mercado. Pós-graduação é para quem vai seguir a vida acadêmica, afirmam os tecnocrátas, CEOs e consultores de mercado de plantão. Não é o que pensa a Alemanha. Lá, a formação de um engenheiro só está completa ao passar pela pós-graduação. E a Alemanha é reconhecida pela inovação na área de engenharia.
Há um mito de que só se forma engenheiro para o mercado quando os problemas do mercado são enfrentados desde a formação do engenheiro na academia. Isso é mais uma lenda. De fato, os problemas da indústria são importantes, e devem ser tratados pelo meio acadêmico. E são, dentro dos ambientes de estágios. Que foram recentemente regulados, para coibir os exessos. Quantas vezes já se ouviu em uma indústria a frase: "Esqueça o que você aprendeu na universidade!".
Mas tais interações entre academia e indústria devem ser motivadas por contribuições mútuas. Não é a academia que deve servir apenas a indústria, mas a indústria que deve buscar servir a academia. As universidades servem a sociedade e seus ideias norteadores. Que são dinâmicos e envolvem várias questões motivadoras, não apenas de momento, mas pensadas estrategicamente, conforme políticas públicas de longo prazo.
Nos EUA, por exemplo, as parcerias entre as indústrias e as universidades vão mais além do que questionar a formação dos engenheiros. A indústria naquele país vai às escolas e injeta dinheiro. Sabe da importância desse estímulo. Cria laboratórios de ensino e pesquisa. Sim, porque não há Iniciação Científica e inovação sem laboratórios de pesquisa e ambientes pensados para comportar esses alunos. Senão, a universidade virá um "colégio". Com tais parcerias, se abrem caminhos para novas pesquisas e inovação.
Todavia, o empresário brasileiro tem uma visão tacanha de como funciona a pesquisa nas universidades. E falar em investimentos na pesquisa nas universidades é ainda tema proibido para muitos.  Algumas indústrias de ponta no Brasil chegaram ao ponto de criar seus próprios laboratórios e sucumbiram frente aos investimentos. 
Para outros, Isso é função apenas do Estado. E seus impostos são para isso. Será? Será que os impostos não estão embutidos nos preços dos produtos? É o custo Brasil.

E dessa forma não há como exigir um profissional específico para cada setor da indústria.
A Petrobrás, por exemplo, criou cursos de Engenharia do Petróleo porque percebeu que só de forma complementar, em pós-graduação, conseguiria transmitir os conhecimentos que gostaria de ter dos seus engenheiros. Por que a indústria brasileira não faz o mesmo? Investe em cursos de pós-graduação de caráter profissional? Voltados para setores específicos, tais cursos podem ser a resposta que se almeja no curto prazo. Para isso, é preciso investir em pesquisa, laboratórios, melhor remuneração de Doutores e sua formação.
A UESC teve a coragem de criar 4 novos cursos de engenharia em 2011, Civil, Elétrica, Química e Mecânica. Projetos inovadores que exigirão grande atenção da sociedade baiana nos próximos anos. E investimentos fortes por parte do Estado. Esses cursos atendem a demanda pela interiorização de novos cursos universitários e a criação de novos cursos de engenharia públicos e gratuitos. E ainda promovem integração com as demais áreas do saber, pela forte ampliação da matriz curricular, com forte carga horária, envolvendo as questões sociais e culturais. Além da opção pela formação sólida do engenheiro pretendido desde sua base.
Neste texto, fica o apelo para que a indústria conheça tais projetos. Faça investimentos reais. Certamente isso permitirá colher resultados tangíveis nos próximos anos para a região de entorno desses cursos e, mais ainda, para todo o Estado da Bahia.

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